sábado, 20 de fevereiro de 2010

Como nos viciamos - 1a Parte

Trechos do livro Cigarro: um adeus possível - Dr. Flavio Gikovate
Infelizmente esgotado, o livro contém informações importantes sobre como o vício se instala, quais os mecanismos, porque os adolescentes são tão vulneráveis. Vale a pena ler.
Dividimos em 3 partes:
1a Parte: hábito X vício
2a Parte: um pouco de teoria
3a Parte: o vício se inicia de modo erótico

Introdução

A aliança que se estabelece entre o homem e o cigarro é extremamente forte e dificílima de ser quebrada.

Uma das coisas que mais acontece quando um indivíduo para de fumar é que ele começa a beber ou a comer muito mais do que fazia anteriormente. Não é raro aumentar o peso e atribuir esse novo malefício ao fato de ter parado de fumar - um ótimo argumento a favor da volta ao cigarro. A maior parte das pessoas que engorda muito depois que param com o cigarro deve isto a um aumento real da ingestão de comida ou de bebida alcoólica. Substituem um vício pelo outro.

Alcoólatras quando param de beber também tendem a engordar.

O vício é a existência de um vínculo forte unindo um ser humano a uma coisa ou situação. O exemplo mais claro de dependência a uma situação é o jogo; mas há também quem coloque nesta categoria dos vícios o prazer em roubar, a tendência de se fixar demais em pornografia, em jogos eróticos de conquista, no trabalho. Exemplos claros de dependências por substâncias químicas são o cigarro, o álcool, drogas e alguns tipos de compulsão para comer.

Quanto a nossa cultura e a forma como somos educados nos impulsiona para esse tipo de solução?

hábito X vício

A diferença entre o que seja um hábito e um vício parece ser o de grau de dependência. Uma pessoa que tem o hábito de tomar 2 doses de uísque todos os dias pode interromper o hábito por recomendação médica sem sentir nenhuma falta especial. Se sentir mais falta do que se esperava - e este é muitas vezes o caso - já estava viciado e não queria admitir para si a verdade. A palavra hábito é frequentemente usada como disfarce para o vício. Hábito seria uma simpatia e não uma dependência por uma substância e seus efeitos. Existem de fato, hábitos envolvendo coisas ou situações e que geram vício em apenas algumas pessoas.

Uma boa forma de distinguirmos hábito de vício é o tamanho da saudade que a ausência provoca quando estamos viciados. Posso estar super habituado a comer doces todo dia. Se tenho uma relação normal com a comida, e o médico me pede para que eu não coma coisas com açúcar por um certo tempo, posso me ressentir discretamente e, depois de alguns minutos, nem me lembro mais do problema. Se sou viciado em comer doces - e isto não é nada raro - não me conformarei assim tão fácil; ficarei ansioso, deprimido, tentarei encontrar algum meio de transgredir o combinado, não conseguirei deixar de pensar no assunto, com dor e saudade, um dia sequer. E quando puder, sairei comendo tudo o que me foi subtraído e mais um pouco. A mesma coisa pode ser dita a respeito do álcool. Quanto ao fumo de cigarros: não existe hábito. No que diz respeito a este tema, todo mundo é viciado. As poucas exceções só servem para confirmar a regra. São pouquíssimas as pessoas que fumam "socialmente", ou o fazem de vez em quando e por prazer.

Apesar de que os hábitos, quando não cumpridos, não determinam dor maior, são procedimentos incrivelmente estáveis, constantes e difíceis de serem mudados. E temos enorme dificuldade de modificar nossos hábitos mesmo quando desejamos muito fazê-lo. É difícil saber como eles se estabeleceram. Não sabemos porque se cristalizam e se perpetuam com tamanha força e nem porque resistem tanto às mudanças. Uma pessoa pode estar querendo muito, por exemplo, passar a comer devagar, mastigando direito os alimentos, só colocando nova porção de comida na boca depois que deglutiu completamente a anterior. Se empenha racionalmente para que isso aconteça. Inicia a refeição fazendo tudo direito e, aos poucos, sem se aperceber, vai voltando a fazer exatamente como fazia. Se uma pessoa se habitua a fumar o cigarro de uma certa maneira, por exemplo, expirando pelo nariz, terá enorme dificuldade para modificar esse padrão de comportamento. Isto não tem nada a ver com o vício, que estaria presente em ambos os casos.

De todo modo, os hábitos não são graves, pois eles costumam fazer parte de comportamentos não muito maléficos à saúde física ou mental. Se o malefício for maior, podem ser interrompido com pouco sacrifício. São comportamentos constantes que nos definem, nos fazem sentir talvez um pouco "em casa" no mundo, com a sensação de que temos algum controle sobre as variáveis que nos cercam. Todo ritual tem por objetivo reduzir algum tipo de ansiedade, de risco ou alguma sensação de medo. São comportamentos padronizados e que se cristalizam porque acreditamos na sua eficácia.

Um aspecto muito significativo é o da importância da dependência física no estabelecimento dos vícios. No caso do alcoolismo, os membros do AA perceberam que a dependência física do álcool se resolve em poucos dias ou semanas. Porém a saudade, a vontade de tomar um trago, de experimentar de novo aquela excitação, aquela euforia, pode demorar muito a passar - se passar.

A maior complicação é a dependência psíquica, o apego que se estabelece entre aquela pessoa e aquela substância - ou aquela situação, para o caso de vícios onde não estejam em jogo nenhuma droga. Se o problema do álcool não fosse o da dependência física, então as internações em hospitais para desintoxicação seriam eficazes. O indivíduo depois de quinze dias, está livre da dependência física do álcool, mas sai da clínica, para no primeiro bar e toma tudo o que lhe aparecer pela frente. Quando a privação é imposta, feita à revelia da pessoa, a tendência para reincidir, rápida e dramaticamente, é máxima – são fenômenos essencialmente psicológicos, onde a bioquímica influi pouco ou nada.

A dependência física, no entanto, é o que mantém e perpetua o vício. Quando um fumante decide parar de fumar, o primeiro obstáculo que ele terá que enfrentar, logo algumas horas após a sua decisão, é ligado à falta que o organismo sente da nicotina e derivará da dependência física que ela provoca. A pessoa poderá sentir moleza, sonolência, associadas a impaciência e irritabilidade (efeitos paradoxais, próprios desta substância que é essencialmente estimulante mas também com efeitos tranquilizantes). A vontade de fumar será enorme e a tendência para a depressão brutal. Se a determinação da pessoa não for grande - e estiver muito bem alicerçada, em pouco tempo ela estará com o cigarro na boca. Dará uma tragada profunda e imediatamente se reencontrará com o seu estado de ânimo "normal" - ou seja, aquele com o qual está habituada a conviver por anos a fio.

Não se deve, por outro lado, superestimar a importância da dependência física. Não é ela que faz com que os ex-fumantes sintam enormes saudades das baforadas de fumaça que inalavam mesmo quando já não fumam há seis, oito ou dez anos. Também não se deve atribuir à dependência física à prolongada tendência a depressão que pode existir em um certo grupo de ex-fumantes por períodos de até doze meses. Os aspectos psicológicos ligados à supressão do vício não estão sendo bem compreendidos e aceitos por essas pessoas que, como regra, voltam a fumar por causa disto. Também a substituição do vício por outro vício não tem base orgânica. A resposta pode estar no maior entendimento do que seja o vício do ponto de vista psicológico.

O grande obstáculo é esta curiosa tendência da nossa espécie de estabelecer vínculos. Nos vinculamos uns com os outros. Nos afeiçoamos rapidamente aos animais. Nos ligamos a objetos. Somos com frequência "apaixonados" pelo nosso carro, pela nossa casa, pelos quadros e tapetes que estão nela. Não podemos conviver sem o nosso país e suas comidas típicas. Não podemos passar sem um trago da nossa bebida favorita. Ou então nos apegamos ao cigarro, nosso companheiro inseparável.

1a Parte: hábito X vício
2a Parte: um pouco de teoria
3a Parte: o vício se inicia de modo erótico

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